Fundação José Saramago | En Español

Sexta-feira, 8 de Março de 2013
Com elas o caos não se teria instalado no mundo

Acabo de ver nos noticiários da televisão manifestações de mulheres em todo o mundo e pergunto-me uma vez mais que desgraçado planeta é este em que ainda metade da população tem que sair à rua para reivindicar o que para todos já deveria ser óbvio...

Chegam-me informações oficiais de solenes insituições que dizem que pelo mesmo trabalho a mulher cobra dezasseis por cento menos, e seguramente esta cifra está falseada para evitar a vergonha de uma diferença ainda maior. Dizem que os conselhos de administração funcionam melhor quando são compostos por mulheres, mas os governos não se atrevem a recomendar que quarenta por cento, já não digamos cinquenta, sejam compostos por mulheres, ainda que, quando chega o colapso, como na Islândia, chamem mulheres para dirigir a vida pública e a banca. Dizem que para evitar a corrupção na organização do trân- sito em Lima vão colocar guardas mulheres, porque se comprovou que nem se deixam subornar nem pedem coimas. Sabemos que a sociedade não funcionaria sem o trabalho das mulheres, e que sem a conversação das mulheres, como escrevi há algum tempo, o planeta sairia da sua órbita, nem a casa nem quem nelas habita teriam a qualidade humana que as mulheres colocam, enquanto os homens passam sem ver, ou, vendo, não se dão conta de que isto é coisa de dois e que o modelo masculino já não serve. Continuo vendo manifestações de mulheres na rua. Elas sabem o que querem, isto é, não ser humilhadas, coisificadas, desprezadas, assassinadas. Querem ser avaliadas pelo seu trabalho e não pelo acidental de cada dia.

Dizem que as minhas melhores personagens são mulheres e creio que têm razão. Às vezes penso que as mulheres que descrevi são propostas que eu mesmo quereria seguir. Talvez sejam só exemplos, talvez não existam, mas de uma coisa estou seguro: com elas o caos não se teria instalado neste mundo porque sempre conheceram a dimensão do humano.

José Saramago, O Caderno I, 8 de março de 2009


Categorias: dia internacional da mulher, saramago

publicado por Fundação Saramago às 11:24
link do post | adicionar aos favoritos
partilhar

Quinta-feira, 14 de Fevereiro de 2013
Problemas de homens

Vejo nas sondagens que a violência contra as mulheres é o assunto número catorze nas preocupações dos espanhóis, apesar de que todos os meses se contem pelos dedos, e desgraçadamente faltam dedos, as mulheres assassinadas por aqueles que crêem ser seus donos. Vejo também que a sociedade, na publicidade institucional e em distintas iniciativas cívicas, assume, é certo que só pouco a pouco, que esta vio- lência é um problema dos homens e que os homens têm de resolver. De Sevilha e da Estremadura espanhola chegaram-nos, há tempos, notícias de um bom exemplo: manifestações de homens contra a violência. Até agora eram somente as mulheres quem saía à praça pública a protestar contra os contínuos maus tratos sofridos às mãos dos maridos e companheiros (companheiros, triste ironia esta), e que, a par de em muitíssimos casos tomarem aspectos de fria e deliberada tortura, não recuam perante o assassínio, o estrangulamento, a punhalada, a degolação, o ácido, o fogo. A violência desde sempre exercida sobre a mulher encontrou no cárcere em que se transformou o lugar de coabitação (neguemo-nos a chamar-lhe lar) o espaço por excelência para a humilhação diária, para o espancamento habitual, para a crueldade psicológica como instrumento de domínio. É o problema das mulheres, diz-se, e isso não é verdade. O problema é dos homens, do egoísmo dos homens, do doentio sentimento possessivo dos homens, da poltronaria dos homens, essa miserável cobardia que os autoriza a usar a força contra um ser fisicamente mais débil e a quem foi reduzida sistematicamente a capacidade de resistência psíquica. Há poucos dias, em Huelva, cumprindo as regras habituais dos mais velhos, vários adolescentes de treze e catorze anos violaram uma rapariga da mesma idade e com uma deficiência psíquica, talvez por pensarem que tinham direito ao crime e à violência. Direito a usar o que consideravam seu. Este novo acto de violência de género, mais os que se produziram neste fim-de-semana, em Madrid uma menina assassinada, em Toledo uma mulher de trinta e três anos morta diante da sua filha de seis, deveriam ter feito sair os homens à rua. Talvez 100 000 homens, só homens, nada mais que homens, manifestando-se nas ruas, enquanto as mulheres, nos passeios, lhes lançariam flores, este poderia ser o sinal de que a sociedade necessita para combater, desde o seu próprio interior e sem demora, esta vergonha insuportável. E para que a violência de género, com resultado de morte ou não, passe a ser uma das primeiras dores e preocupações dos cidadãos. É um sonho, é um dever. Pode não ser uma utopia.

In O Caderno 2, 27 de julho de 2009


Categorias: caderno, mulheres, violência

publicado por Fundação Saramago às 12:24
link do post | adicionar aos favoritos
partilhar

Terça-feira, 5 de Fevereiro de 2013
No centenário de Álvaro Cunhal
Não foi o santo que alguns louvavam nem o demónio que outros aborreciam, foi, ainda que não simplesmente, um homem. Chamou-se Álvaro Cunhal e o seu nome foi, durante anos, para muitos portugueses, sinónimo de uma certa esperança. Encarnou convicções a que guardou inabalável fidelidade, foi testemunha e agente dos tempos em que elas prosperaram, assistiu ao declínio dos conceitos, à dissolução dos juízos, à perversão das práticas. As memórias pessoais que se recusou a escrever talvez nos ajudassem a compreender melhor os fundamentos da raquítica árvore a cuja sombra se recolhem hoje os portugueses a ingerir os palavrosos farnéis com que julgam alimentar o espírito. Não leremos as memórias de Álvaro Cunhal e com essa falta teremos de nos conformar. E também não leremos o que, olhando desde este tempo em que estamos o tempo que passou, seria provavelmente o mais instrutivo de todos os documentos que poderiam sair da sua inteligência e das suas finas mãos de artista: uma reflexão sobre a grandeza e decadência dos impérios, incluindo aqueles que construímos dentro de nós próprios, essas armações de ideias que nos mantêm o corpo levantado e que todos os dias nos pedem contas, mesmo quando nos negamos a prestá-las. Como se tivesse fechado uma porta e aberto outra, o ideólogo tornou-se autor de romances, o dirigente político retirado passou a guardar silêncio sobre os destinos possíveis e prováveis do partido de que havia sido, por muitos anos, contínua e quase única referência. Quer no plano nacional quer no plano internacional, não duvido de que tenham sido de amargura as horas que Álvaro Cunhal viveu ainda. Não foi o único, e ele o sabia. Algumas vezes o militante que sou não esteve de acordo com o secretário-geral que ele era, e disse-lho. A esta distância, porém, já tudo parece esfumar-se, até as razões com que, sem resultados que se vissem, nos pretendíamos convencer um ao outro. O mundo seguiu o seu caminho e deixou-nos para trás. Envelhecer é não ser preciso. Ainda precisávamos de Cunhal quando ele se retirou. Agora é demasiado tarde. O que não conseguimos é iludir esta espécie de sentimento de orfandade que nos toma quando nele pensamos. Quando nele penso. E compreendo, garanto que compreendo, o que um dia Graham Greene disse a Eduardo Lourenço: «O meu sonho, no que toca a Portugal, seria conhecer Álvaro Cunhal». O grande escritor britânico deu voz ao que tantos sentiam. Entende-se que lhe sintamos a falta.
in O Caderno 2, 31 de julho de 2009

Categorias: caderno, álvaro cunhal

publicado por Fundação Saramago às 11:42
link do post | adicionar aos favoritos
partilhar

Quarta-feira, 26 de Dezembro de 2012
Dona Canô

Morreu Dona Canô, mãe de Caetano Veloso, Maria Bethânia e outros seis filhos. Era a matriarca de Santo Amaro.

Dos Cadernos de Lanzarote, Diário IV, uma passagem não escrita por José Saramago mas sim por Pilar del Río, a pedido do Autor, contando a passagem por Santo Amaro, ao som de Caetano Veloso perante a presença de Dona Canô:

 

O dia terminou em Santo Amaro, onde, como diziam os autocolantes que as pessoas levavam e que conservamos, «vi e ouvi Caetano em Santo Amaro». Há uns anos, José e eu ouvimos Miguel Ríos em Granada: «Volto a Granada, volto ao meu lar», cantava o roqueiro, e o som (todo ele) era tão cálido, tão de dentro, que José́ escreveu um artigo para o Diario 16, intitulado «Alegria do português que foi a Granada», em clara alusão à canção de Miguel Ríos, de regresso à sua terra, e a Rafael Alberti, que escreveu, quando do assassínio de Lorca, aquele memorável poema que se chama Nunca Fui a Granada.

Em Santo Amaro repetiram-se aquelas emoções. Cantava Caetano Veloso no lugar onde nasceu, na praça de uma cidade em festa. Esperavam-no os seus, a sua imensa família, as pedras das ruas, também aqui animadas, e as janelas das casas, todas elas repletas de ansiosos ouvintes de Caetano. E dos amigos de Caetano, porque o artista, como oferta de surpresa, apresentou os seus amigos, Gilberto Gil entre eles, que contribuíram, com os seus diferentes ritmos, para tornar maior a noite. A um lado do palco, majestosa, uma anciã de cabelo branco recolhido permanecia, elegantemente sentada, atenta aos músicos e aos espectadores. Olhávamo-la hipnotizados. Era Dona Canô, a mãe de Caetano, um pouco a mãe de Santo Amaro, animadora de todas as caridades, confidente de penas (as alegrias apregoam-se) e distribuidora da porção de paz de que todos precisamos para poder sobreviver. Também é uma excelente cozinheira, mas aqui «falta-lhe» a generosidade: ela, que dá de comer a quem tem necessidade ou a quem procura o prazer do gosto, emudece quando se lhe fala de revelar os seus segredos culinários. Muitas editoras brasileiras lhe pediram que escreva as suas receitas, mesmo os seus próprios filhos, todos magníficos gastrónomos, desconhecem o toque mágico que cada prato cozinhado por Dona Canô encerra. Eu creio que o elixir da sabedoria, na cozinha como na vida, é a generosidade. Talvez por isso ela não possa revelar nada: os pratos, simplesmente, saem-lhe assim, porque os faz para outros, com amor.


Categorias: dona cano

publicado por Fundação Saramago às 10:08
link do post | adicionar aos favoritos
partilhar

Sexta-feira, 14 de Setembro de 2012
Chega sempre um momento em que é preciso dizer não

A palavra de que eu gosto mais é não. Chega sempre um momento na nossa vida em que é necessário dizer não. O não é a única coisa efectivamente transformadora, que nega o status quo. Aquilo que é tende sempre a instalar-se, a beneficiar injustamente de um estatuto de autoridade. É o momento em que é necessário dizer não. A fatalidade do não - ou a nossa própria fatalidade - é que não há nenhum não que não se converta em sim. Ele é absorvido e temos que viver mais um tempo com o sim. José Saramago , in "Folha de S. Paulo" (1991)


Categorias: cadernos, não

publicado por Fundação Saramago às 16:12
link do post | adicionar aos favoritos
partilhar

« anterior | home

Pesquisa
 
Entradas recentes

Com elas o caos não se te...

Problemas de homens

No centenário de Álvaro C...

Dona Canô

Chega sempre um momento e...

Cão com lágrimas

Salvar Badajoz

“Entra, encontraste a tua...

Memórias de 1934

Carlos Fuentes

Categorias
  • álvaro cunhal
  • badajoz
  • caderno
  • cadernos
  • cadernos de lanzarote
  • cão camões
  • carlos fuentes
  • dia internacional da mulher
  • dona cano
  • lanzarote
  • mulheres
  • não
  • saramago
  • violência

todas as tags

Arquivo

Março 2013

Fevereiro 2013

Dezembro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Maio 2012

Abril 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Subscrever RSS

spacer Posts

spacer Comentários


gipoco.com is neither affiliated with the authors of this page nor responsible for its contents. This is a safe-cache copy of the original web site.