Acabo de ver nos noticiários da televisão manifestações de mulheres em todo o mundo e pergunto-me uma vez mais que desgraçado planeta é este em que ainda metade da população tem que sair à rua para reivindicar o que para todos já deveria ser óbvio...
Chegam-me informações oficiais de solenes insituições que dizem que pelo mesmo trabalho a mulher cobra dezasseis por cento menos, e seguramente esta cifra está falseada para evitar a vergonha de uma diferença ainda maior. Dizem que os conselhos de administração funcionam melhor quando são compostos por mulheres, mas os governos não se atrevem a recomendar que quarenta por cento, já não digamos cinquenta, sejam compostos por mulheres, ainda que, quando chega o colapso, como na Islândia, chamem mulheres para dirigir a vida pública e a banca. Dizem que para evitar a corrupção na organização do trân- sito em Lima vão colocar guardas mulheres, porque se comprovou que nem se deixam subornar nem pedem coimas. Sabemos que a sociedade não funcionaria sem o trabalho das mulheres, e que sem a conversação das mulheres, como escrevi há algum tempo, o planeta sairia da sua órbita, nem a casa nem quem nelas habita teriam a qualidade humana que as mulheres colocam, enquanto os homens passam sem ver, ou, vendo, não se dão conta de que isto é coisa de dois e que o modelo masculino já não serve. Continuo vendo manifestações de mulheres na rua. Elas sabem o que querem, isto é, não ser humilhadas, coisificadas, desprezadas, assassinadas. Querem ser avaliadas pelo seu trabalho e não pelo acidental de cada dia.
Dizem que as minhas melhores personagens são mulheres e creio que têm razão. Às vezes penso que as mulheres que descrevi são propostas que eu mesmo quereria seguir. Talvez sejam só exemplos, talvez não existam, mas de uma coisa estou seguro: com elas o caos não se teria instalado neste mundo porque sempre conheceram a dimensão do humano.
José Saramago, O Caderno I, 8 de março de 2009
Vejo nas sondagens que a violência contra as mulheres é o assunto número catorze nas preocupações dos espanhóis, apesar de que todos os meses se contem pelos dedos, e desgraçadamente faltam dedos, as mulheres assassinadas por aqueles que crêem ser seus donos. Vejo também que a sociedade, na publicidade institucional e em distintas iniciativas cívicas, assume, é certo que só pouco a pouco, que esta vio- lência é um problema dos homens e que os homens têm de resolver. De Sevilha e da Estremadura espanhola chegaram-nos, há tempos, notícias de um bom exemplo: manifestações de homens contra a violência. Até agora eram somente as mulheres quem saía à praça pública a protestar contra os contínuos maus tratos sofridos às mãos dos maridos e companheiros (companheiros, triste ironia esta), e que, a par de em muitíssimos casos tomarem aspectos de fria e deliberada tortura, não recuam perante o assassínio, o estrangulamento, a punhalada, a degolação, o ácido, o fogo. A violência desde sempre exercida sobre a mulher encontrou no cárcere em que se transformou o lugar de coabitação (neguemo-nos a chamar-lhe lar) o espaço por excelência para a humilhação diária, para o espancamento habitual, para a crueldade psicológica como instrumento de domínio. É o problema das mulheres, diz-se, e isso não é verdade. O problema é dos homens, do egoísmo dos homens, do doentio sentimento possessivo dos homens, da poltronaria dos homens, essa miserável cobardia que os autoriza a usar a força contra um ser fisicamente mais débil e a quem foi reduzida sistematicamente a capacidade de resistência psíquica. Há poucos dias, em Huelva, cumprindo as regras habituais dos mais velhos, vários adolescentes de treze e catorze anos violaram uma rapariga da mesma idade e com uma deficiência psíquica, talvez por pensarem que tinham direito ao crime e à violência. Direito a usar o que consideravam seu. Este novo acto de violência de género, mais os que se produziram neste fim-de-semana, em Madrid uma menina assassinada, em Toledo uma mulher de trinta e três anos morta diante da sua filha de seis, deveriam ter feito sair os homens à rua. Talvez 100 000 homens, só homens, nada mais que homens, manifestando-se nas ruas, enquanto as mulheres, nos passeios, lhes lançariam flores, este poderia ser o sinal de que a sociedade necessita para combater, desde o seu próprio interior e sem demora, esta vergonha insuportável. E para que a violência de género, com resultado de morte ou não, passe a ser uma das primeiras dores e preocupações dos cidadãos. É um sonho, é um dever. Pode não ser uma utopia.
In O Caderno 2, 27 de julho de 2009
Morreu Dona Canô, mãe de Caetano Veloso, Maria Bethânia e outros seis filhos. Era a matriarca de Santo Amaro.
Dos Cadernos de Lanzarote, Diário IV, uma passagem não escrita por José Saramago mas sim por Pilar del Río, a pedido do Autor, contando a passagem por Santo Amaro, ao som de Caetano Veloso perante a presença de Dona Canô:
O dia terminou em Santo Amaro, onde, como diziam os autocolantes que as pessoas levavam e que conservamos, «vi e ouvi Caetano em Santo Amaro». Há uns anos, José e eu ouvimos Miguel Ríos em Granada: «Volto a Granada, volto ao meu lar», cantava o roqueiro, e o som (todo ele) era tão cálido, tão de dentro, que José́ escreveu um artigo para o Diario 16, intitulado «Alegria do português que foi a Granada», em clara alusão à canção de Miguel Ríos, de regresso à sua terra, e a Rafael Alberti, que escreveu, quando do assassínio de Lorca, aquele memorável poema que se chama Nunca Fui a Granada.
Em Santo Amaro repetiram-se aquelas emoções. Cantava Caetano Veloso no lugar onde nasceu, na praça de uma cidade em festa. Esperavam-no os seus, a sua imensa família, as pedras das ruas, também aqui animadas, e as janelas das casas, todas elas repletas de ansiosos ouvintes de Caetano. E dos amigos de Caetano, porque o artista, como oferta de surpresa, apresentou os seus amigos, Gilberto Gil entre eles, que contribuíram, com os seus diferentes ritmos, para tornar maior a noite. A um lado do palco, majestosa, uma anciã de cabelo branco recolhido permanecia, elegantemente sentada, atenta aos músicos e aos espectadores. Olhávamo-la hipnotizados. Era Dona Canô, a mãe de Caetano, um pouco a mãe de Santo Amaro, animadora de todas as caridades, confidente de penas (as alegrias apregoam-se) e distribuidora da porção de paz de que todos precisamos para poder sobreviver. Também é uma excelente cozinheira, mas aqui «falta-lhe» a generosidade: ela, que dá de comer a quem tem necessidade ou a quem procura o prazer do gosto, emudece quando se lhe fala de revelar os seus segredos culinários. Muitas editoras brasileiras lhe pediram que escreva as suas receitas, mesmo os seus próprios filhos, todos magníficos gastrónomos, desconhecem o toque mágico que cada prato cozinhado por Dona Canô encerra. Eu creio que o elixir da sabedoria, na cozinha como na vida, é a generosidade. Talvez por isso ela não possa revelar nada: os pratos, simplesmente, saem-lhe assim, porque os faz para outros, com amor.
A palavra de que eu gosto mais é não. Chega sempre um momento na nossa vida em que é necessário dizer não. O não é a única coisa efectivamente transformadora, que nega o status quo. Aquilo que é tende sempre a instalar-se, a beneficiar injustamente de um estatuto de autoridade. É o momento em que é necessário dizer não. A fatalidade do não - ou a nossa própria fatalidade - é que não há nenhum não que não se converta em sim. Ele é absorvido e temos que viver mais um tempo com o sim. José Saramago , in "Folha de S. Paulo" (1991)
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