Pois é, sou realmente um asno
que mora entre árvores e plantas.
Não me perguntem sobre as ilusões e a iluminação -
este velhote só gosta de sorrir para si próprio.
Vagueio pelos riachos com as minhas pernas ossudas,
e levo comigo uma sacola no bom tempo da primavera.
Essa é a minha vida,
e o mundo nada me deve.
A beleza chiante deste mundo nada me diz -
os meus amigos mais próximos são as montanhas e o rios,
as nuvens engolem a minha sombra segundo vou passando.
Quando me sento nos penhascos, os pássaros pairam sobre a cabeça.
Calçando chinelos de palha para a neve, visito aldeias frias.
Vai tão fundo quanto puderes na vida,
e poderás esquecer-te até das flores.
* * * * * *
Um trilho solitário entre dez mil árvores,
um vale nevoento entre mil cimeiras.
Ainda não é outono, mas as folhas já estão a cair.
Por enquanto não chove, mas na mesma as rochas escurecem-se.
Com o meu cesto, procuro cogumelos;
com o meu balde, vou procurar água pura da nascente.
Se não te perderes de propósito,
nunca vais chegar tão longe.
Subo ao Corredor da Grande Compaixão
e olho para as nuvens e o nevoeiro.
Árvores antigas estiram-se para o céu,
e a brisa fresca fala de dez mil gerações.
Por baixo, a Nascente do Rei Dragão -
tão pura que podes ver o seu princípio.
Às pessoas que passam, grito
'Venham! Venham ver-se refletidos na água!'.
(Ryôkan)
Na quietude através da janela vazia,
sento-me em zazen vestindo o meu kesa de monge.
Nariz e umbigo alinhados,
orelhas paralelas aos ombros.
A luz da lua inunda o quarto.
A chuva parou mas o beiral não deixa de pingar.
Perfeito este momento -
na vasta vacuidade, a minha compreensão faz-se mais funda.
(Ryôkan)
Às vezes vida
sangrando na
palavra interior
das cosmologias,
ardendo na língua
extensa deste amor
que habita no vazio
e descobre a sua
densidade perfeita.
Somos verso sem
olhos alçando-se
em silêncio até
destruir as casas
feridas pelo medo,
extraviados dos
nossos corpos
como no início
de uma música
entre a luz e a
noite, infinita.
(Ramiro Torres)
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